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O que é Diáspora Africana?

  • Foto do escritor: Carol dos Anjos
    Carol dos Anjos
  • 27 de mai. de 2019
  • 8 min de leitura

Atualizado: 19 de out. de 2020

Nesse post converso com Dr. Cauê Gomes Flor sobre o(s) conceito(s) e uso(s) da expressão Diáspora Africana


Diáspora Africana?! Da primeira vez que ouvi fiquei encucada e foi preciso tempo para ir dando mais rumo ao prumo. No doutorado (Sociologia-UFSCar) percebi que o conceito/categoria é uma encruzilhada. Na leitura do um texto de qualificação de doutorado em Sociologia de Cauê Gomes Flor comecei a compreender melhor. A pesquisa “O conceito de diáspora africana e o debate sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo”, finalizado na ultima quinta-feira (15/10/20), assim em breve teremos acesso a versão final e completa, mas enquanto isso, o Cauê foi um querido e concedeu uma entrevista, em setembro de 2019 e que, agora, reabre os caminhos das produções textuais nesse site.

Mineiro do triângulo (município de Ituiuba), 32 anos, casado com a mestra em Sociologia e professora Luana Silva de Souza Flor, pai, Cauê, fez graduação em Ciências Sociais (UNESP-Marília) e mestrado em Sociologia (UFSCar) e doutorado Ciências Sociais na Unesp-Marília, com orientação do prof. Dr. Andreas Hofbauer. Esse camarada é uma das pessoas mais inteligentes que conheço, por isso e por outras que quis muito conversar com ele para produzir um registro para o site. Sem mais delongas adentremos à gira conceitual.

Carol - O que é Diáspora Africana, Cauê?

Cauê - Enquanto conceito diz respeito a descrição do processo de dispersão dos povos de origem africana a partir do tráfico e também sobre a relação de identidade e pertencimento. Isto é, como que a população afrodescendente constrói sua identidade cultural e a noção de pertencimento quando em situação de diáspora. Existem alguns modelos de diáspora e cada um concebe a identidade cultural e a relação África e diáspora (comunidade e sua origem) de maneira diferente. Vale destacar que a ideia de modelos tem um sentido meramente didático, pois na prática se misturam.

Carol – Conceitos de identidade cultural e pertencimento são também importantes para pensar a diáspora judaica, certo? Desse modo, qual a relação entre diáspora africana e diáspora judaica?

Cauê – No ocidente, tanto os judeus como os negros são exitosos na construção de um senso de solidariedade voltado para uma origem comum. A perspectiva de diáspora africana começa no final do século XIX e início do XX, quando alguns autores afro-americanos e caribenhos começaram a aproximar a experiência judaica de dispersão, exílio e retorno à terra prometida com a experiência dos povos de origem africana. Trata-se da primeira tradição intelectual afro estadunidense (afro cristianismo), com autores como Ottobah Cugoano (autor da obra Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery), Olaudah Equiano, Edward Wilmot Blyden, Alexander Crummel, W. E. B. Du Bois, dentre outros. Um fator importante é que esses autores têm em comum uma formação religiosa (protestante e pentecostal) e um contato com o antigo testamento. Sendo esse contato que proporciona e dá subsídio para a construção das primeiras narrativas que correlacionavam o processo de escravidão (a travessia e o exílio) com a narrativa judaica.

Ademais, é comum na construção das ideias/categorias de diáspora judaica e africana o retorno (físico, espiritual e/ou simbólico). Nesse momento as narrativas afro cristãs traziam a perspectiva de retornar a África, em um retorno espiritual. Voltar ao continente africano traria redenção da escravidão e libertação dos processos de opressão.

Outro ponto de semelhança importante de destacar é a entrada de um novo termo na equação: a nação. A partir dessa entrada os judeus criam o sionismo e os africanos o pan-africanismo. Assim sendo, a diáspora africana e a judaica são modelos normativos, seja no ponto de vista cronológico ou da noção de pertencimento e semelhança nas categorias articuladas.

Carol – Essa virada do século XIX para XX é extremamente importante, porque além de nação há outros termos ascendendo de maneira ressignificada, como por exemplo, Raça. Você poderia falar mais de como conceitos de nação e raça compõem a perspectiva de diáspora, nesse momento?

Cauê – Nesse período, além do conceito de nação há o processo da emergência da categoria raça como um elemento que passa a descrever as diferenças e a hierarquizar os seres humanos. Autores como Brylen, Crommel e Marcus Garvey começam a ver a África como o espaço da raça negra e pátria dos negros. Esses elementos conectados são responsáveis por construir o senso de pertencimento. Desse modo, o retorno que antes era espiritual e simbólico se torna físico, pois havia um desejo de retorno a terra prometida para os negros que estaria localizada em três países: Egito, Etiópia e a Libéria, sendo que o último recebe um enorme contingente de ‘migrantes’ negros.

Vale salientar que, nesse momento, os significados de diáspora africana e diáspora judaica têm em comum pontos da simbologia e semiótica, pois, traçam uma noção fechada de tribo e de pertencimento. A noção do pertencimento, nesse caso, gravita em torno de dois termos: raça como elemento aglutinador de solidariedade política e nação como elemento aglutinador espacial. Logo, se tem uma narrativa que entrelaça: povo, espaço (território da nação) e cultura.

Outro ponto que perpassa a construção desse modelo de diáspora é que antes o pertencimento à ‘raça negra’ era justificado por uma narrativa genealógica – os filhos de Cam, do antigo testamento bíblico. Ottobah Cugoano e Olaudah Equiano contra-argumentam tecendo uma crítica por dentro da tradição cristã ao afirmarem que a população negra descenderia de outro filho de Abraão e não do ‘amaldiçoado Cam’. Desse modo, ao reivindicarem outra filiação genealógica e com isso estavam rejeitando os argumentos que legitimavam a escravidão (descritos em vários documentos de países católicos colonizadores).

Carol – Qual seu recorte teórico na construção de uma história do conceito de diáspora africana?

Cauê – Pensar diáspora é pensar identidade e pertencimento e o recorte teórico e metodológico da minha pesquisa está no texto Novas Etnicidades (New Ethnicity) do Stuart Hall. O Hall faz uma afirmação aparentemente retórica, porém muito poderosa que aponta que a noção de identidade organiza a construção de solidariedade das políticas negras e está intimamente associada as projeções teóricas. Isto é, para Stuart Hall, há uma relação entre a construção de identidade e a fundamentação teórica.

Outros dois importantes conceitos que discuto na pesquisa são ‘raça’ e ‘cultura’. Buscando entender como que ao longo do tempo e do espaço os autores relacionam esses termos a fim de articularem os modelos de diáspora africana. Aponto que como fruto desse processo de articulação emergem identidades culturais negras distintas, sendo essa a clivagem que uso para delimitar os diferentes modelos e perspectivas de diáspora africana. Dessa maneira, intento construir uma tese da história do conceito de diáspora africana. Dentre os modelos minha predileção atualmente é pós-colonial, com uma ‘veia’ pós-estruturalista.

Carol – Explique um pouco mais sobre essa ‘veia’ pós-estruturalista para pensar um modelo de diáspora africana.

Cauê – Essa perspectiva parte do conceito pós-estruturalista de differance do (Jacques) Derrida. Differance traz em si uma lógica da análise linguística do Derrida, como também uma tradição do pensamento do Gilles Deleuze e Félix Guattari. De modo geral, esses intelectuais possibilitam a construção do pensamento da dispersão, ou seja, a impossibilidade do fechamento do signo. O que dá subsídio para pensar os conceitos de identidade e cultura de forma aberta. Assim sendo, me aproximo dos pós-coloniais que entendem a diáspora africana como esse processo de repetição com diferença. Isto é, ser diaspórico é uma condição de ser e um processo de tornar-se, sem ponto de volta ou de chegada. Esse processo de produção – uma usina, como diria o Deleuze ou essa prática significante como diria o Derrida – na qual ao se apropriar de elementos de origem africana os repete na diferença. Sintetizando é apropriação, repetição com diferença e uma nova produção que cria também as comunidades interpretativas. Embora o conceito seja bem mais amplo, as comunidades interpretativas são o modo como que as comunidades negras em situação de diáspora se valem da prática de apropriação, repetição com diferença para produzirem cultura e darem significado ao mundo.

Hoje penso a diáspora africana como um processo de tornar-se. Não há um dever-ser africano, mas um devir dessa identidade que se está sempre sendo (re)produzida.

Carol – O debate pós-colonial e caribenho são ‘novos’ discursos teóricos, elementos de artesanato intelectual para construção de narrativas sociológicas para pensar a diáspora africana. Você poderia explicar a diferença entre essas duas correntes de pensamento?

Cauê – Os pós-coloniais têm uma trajetória dentro da academia anglo-saxã e em uma relação com o cânone ocidental para pensar as saídas da zona no não ser. Assim, fazem a crítica da identidade essencialista e substantiva demonstrando como essa concepção é mais condescendente com os signos da nação. Dessa maneira, o conceito de diáspora africana entre pós-coloniais ascende como uma possibilidade metodológica para descentrar o sujeito negro essencial em um processo de descentramento que visa rejeitar os sistemas epistemológicos ocidentais.

No Caribe, hoje, estão tentando produzir outras saídas dessa relação. Reconhecem que há uma relação colonial, epistemológica e ontológica, na qual identidades substantivas são um ‘convite’ para que a população afrodescendente se reescreva nessas perspectivas normativas, tal qual os pós-coloniais, mas a ‘saída’ caribenha está na poética e no existencialismo. A possibilidade de se investir na literatura para sedimentar outras possibilidades de sujeito, como por exemplo, o trabalho da Sylvia Wynter. Um investimento na existência no corpo, ou seja, em valorizar os movimentos espirituais e culturais para produzir uma outra possibilidade de existência.

Carol – Em clima de despedida, você poderia comentar sobre sua trajetória acadêmica e a relação do sujeito Cauê com a pesquisa?

Cauê – Penso que nossas pesquisas, no final das contas, são algo sobre nós mesmos e comigo não foi diferente. Em 2008, iniciei o curso de Ciências Sociais na Unesp de Marília pretendendo estudar cultura e globalização. Essa ideia surgiu ao assistir o documentário “Uma outra globalização” (dirigido por Silvio Tendler, Encontro com Milton Santos – ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá, facilmente encontrado na internet). Mas, em 2009, comecei estudar a questão racial por uma eventualidade, pois naquele ano chegaram os dois primeiros estudantes africanos (Angola) quando pensei que a vivência deles seria um excelente estudo de caso. Desse modo, meu orientador (Andreas) pontou que se quisesse estudar o tema a partir da experiência dos alunos angolanos seria preciso pesquisar mais sobre relações raciais. No início as coisas ficaram confusas, porque lia e não me identifica com o que diziam. Uma vez que não era do futebol, do Candomblé, da periferia e tinha uma formação cristã é mesmo assim continuava sendo um homem negro. O ser negro da literatura era por mim associada a figura do meu pai (periferia, futebol, candomblé, samba, etc.) que trazia também a lembrança de violência doméstica. Isso era muito confuso na minha cabeça.

Nesse processo passei a ter contato com autores como Stuart Hall, Paul Gilroy, Homi K. Bhabha, e escrevi a pesquisa ‘Que negro é esse?’ Identidade negra na era da globalização: o estudo de caso sobre imigrantes angolanos. Um fator crucial que entendi foi que esses estudantes angolanos quando chegavam ao Brasil se constituíam como um grupo articulando alguns elementos e se valiam de marcadores de diferença para agenciar um senso de pertencimento. Nesse processo passei a compreendê-los, mas também a me entender. A questão da minha identidade foi e talvez ainda seja o mote organizador do que pesquiso.

Depois no mestrado fui para São Carlos (UFSCar) e com a orientação do professor Valter R. Silvério continuei estudando os alunos angolanos no Brasil, mas o processo de racialização entrou como outro elemento. Pois, os estudantes constroem uma identidade angolana que aglutina identidades regionais, diferenças linguísticas em reação ao processo de racionalização. Na UFSCar me aproximei do Frantz Fanon de outra forma e dos pós-coloniais, a pesquisa de mestrado recebeu o título Da racialização a etnicização: a construção de um complexo posicionar-se. Assim comecei nos Estudos da Diáspora Africana, de maneira mais sistemática, porque já estudava diáspora, embora não desse esse nome.

Em 2016, voltei para Unesp de Marília para fazer o doutorado e estou produzindo uma pesquisa: O conceito de diáspora africana e o debate sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo.

Cauê G. Flor também estudou no Department of Africana Studies - Brown University, com orientador Keisha-Khan Y. Perry (período sanduíche do doutorado) para aprimorar sua pesquisa e formação e, como disse no começo deste texto, em breve teremos acesso ao texto completo da sua tese de doutorado.

 
 
 

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Ana Carolina C. dos Anjos © 2023                     criado com Wix.com

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